O que é História das Ciências? #1 – Explicando o Steven Shapin

Mais do que um autor polêmico, para o qual a Revolução Científica não existiu, Steven Shapin simboliza o modus operandi da nova história das ciências, este campo acadêmico que se renovou graças a marcos importantes ao longo do século XX, como as ideias de Ludwik Fleck, de Thomas Kuhn (trataremos desses dois em um dos capítulos de nossa série) e a sociologia do conhecimento científico, para citar alguns exemplos.

Autor de livros importantes como Leviathan e a bomba de vácuo: Hobbes, Boyle e a vida experimental, A Revolução Científica, Nunca Pura, além de muitos outros, Shapin é um historiador e sociólogo da ciência de 76 anos. Nascido em Nova York, em 1943, Shapin estudou biologia no Reed College em Portland, Oregon, e posteriormente genética na Universidade de Wisconsin. Seu Ph.D foi em História e Sociologia da Ciência na Universidade da Pensilvânia, no início da década de 1970. Das preocupações que percorrem o trabalho de Shapin, as principais são: os cientistas e suas escolhas técnicas, a base da credibilidade científica, a natureza e o papel da experimentação científica, dentre outras.

Apresentarei, a partir de agora, uma pequena síntese de cada um dos livros citados acima, para que àqueles que se interessem ou que tenham acabado de se interessar pelo autor possam ter um ponto de partida.

Leviathan e a bomba de vácuo: Hobbes, Boyle e a vida experimental

Leviathan e a bomba de vácuo: Hobbes, Boyle e a vida experimental (2005) pode ser considerado um livro incontornável na medida em que trás à tona, através de um minucioso e complexo trabalho, uma investigação que vincula duas esferas vistas quase sempre como distintas, ou até mesmo opostas: a esfera da ciência e a esfera da política. Para tanto, o estudo, desenvolvido pelos autores Steven Shapin e Simon Schaffer, possui como objeto um livro de filosofia política e um dispositivo pneumático. Com isso acessam, mediante um ferramental teórico-metodológico propiciado por Ludwig Wittgenstein, tais como os conceitos de jogos de linguagem formas de vida, a Royal Society, onde se produziram os fatos científicos e os experimentos de Robert Boyle postos em análise e o ambiente teórico de Thomas Hobbes.

Assim, examinando o caminho experimental (representado por Boyle) e o caminho filosófico (encarnado na figura de Hobbes), os autores do livro focalizam como interesse as controvérsias existentes entre Hobbes e Boyle. Deste modo, chegam a sua tese central, cuja qual “sugere que as soluções dadas ao problema do conhecimento estão incorporadas nas soluções práticas dadas ao problema da ordem social, e que diferentes soluções práticas ao problema da ordem social envolvem soluções práticas distintas ao problema do conhecimento.” (SHAPIN; SCHAFFER, 2005, p.11) Fazendo um exercício de desatar o nó deste jogo de palavras que beira um trava-línguas, devemos considerar alguns pontos fundamentais para compreender o que os autores estão dizendo.

A crise religiosa do período – século XVII – e o turbilhão pelo qual passava a Inglaterra em decorrência da Revolução Inglesa aconteceria no mesmo período de criação da Royal Society, sociedade científica que não só foi palco para os trabalhos de Boyle, como também fora para os trabalhos de Newton, por exemplo. Entretanto, Hobbes não teve espaço algum dentro desta instituição. Longe disso, e de toda a cultura experimental que se germinava nos solos da Royal, acabou por se tornar um crítico severo dos fatos que lá foram produzidos. Distante assim, das formas de vida, bem como alheio aos jogos de linguagem da referida sociedade, os trabalhos de Hobbes no âmbito da filosofia natural sequer foram exumados pela história.

O exame da extensa discussão entre Boyle e Hobbes acerca da existência do vácuo perpassa a análise de uma grande distinção histórica entre os dois personagens que incorreu na construção de Boyle como um dos fundadores da filosofia natural e Hobbes como referência-mor da filosofia política. A rejeição do vácuo por Hobbes era uma rejeição ao poder político da Inglattera, pois a aceitação dos fatos produzidos por Boyle seria também uma aceitação de certas concepções políticas e religiosas, das quais Hobbes não compactuava. 

Robert Boyle (1627-1691)

Assim, a minúcia do estudo em questão, o qual envolveu a análise da obra filosófica e científica de Hobbes, a obra de Boyle e a discussão entre ambos, levou a conclusão de que os problemas em torno dos modos de organizar a ciência, a sociedade política e a conformação dos fatos científicos estão intrinsecamente entrelaçados. Assim, não há distinção entre representações científicas acerca da natureza e interesses políticos. O livro, referência central na nova sociologia da ciência, por mais que pareça, não possui em seu enredo as características de uma crítica pós-moderna à ciência. O seu caráter levemente polemista não se fundamenta num relativismo puro, e sim numa equiparação metodológica dos enunciados filosóficos e científicos, deixando de lado toda e qualquer possibilidade de valoração à tais personagens que, nesta discussão, não são nem vencedores nem perdedores.

A Revolução Científica

 Em A revolução científica(1999), de Steven Shapin, o social e o científico se tornam objeto de investigação. O livro começa com uma frase de efeito, para provocar polêmica: “A Revolução Científica não existiu, e este livro é acerca disso” (SHAPIN, 1999, p. 23). Na verdade, ao meu ver, o livro não se trata da inexistência de uma Revolução Científica, pois como categoria ou evento histórico, esta faz não só parte do livro como um todo, como também constitui o cerne da argumentação do autor. Assim, Shapin começa situando a Revolução Científica. Expõe a definição “incrustada na tradição”, ou seja, a da Revolução Científica como uma “revolução conceitual, uma reordenação fundamental das nossas maneiras de pensar o natural; mudanças radicais nas categorias básicas do entendimento.” (Idem.) Elenca Alexandre Koyré (1939) como aquele que teria iniciado a utilização do termo,destacando a inexistência do termo nos indivíduos partícipes da ciência do período e comentando sobre o significado seiscentista de Revolução como ciclo recorrente, bem diferente do utilizado hoje. Assim, preparando o terreno, Shapin define a Revolução Científica como “um leque diversificado de práticas culturais empenhadas em compreender, explicar e controlar o mundo natural, cada uma delas com diferentes características e cada uma experimentando diferentes modalidades de mudança” (SHAPIN, 1999, p.25). 

Nunca Pura

Steven Shapin, em seu irônico texto chamado Baixando o tom na História da Ciência: um chamado nobre, introdução de Nunca Pura, coloca em xeque a história da ciência edificante, heróica, teleológica e inenarravelmente seletiva. Para além dos exemplos engraçados do texto, Shapin expõe um quadro de questões destinadas ao que ele chama de “Ciência herética”. Todos os pontos colocados por Shapin para uma baixeza necessária na História da Ciência são sintetizados no próprio subtítulo de seu livro, Nunca Pura: Estudos Históricos de Ciência como se fora produzida por pessoas com corpos, situadas no tempo, no Espaço, na cultura e na sociedade e que se empenham por credibilidade e autoridade. E o que Shapin nos conta de mais interessante, é justamente que esse novo modo de fazer História da Ciência se tornou norma na historiografia. Com isso, novas questões foram colocadas, tais como o problema da unidade científica, a multiplicidade paradigmática e, sobretudo, o fato de que nós, historiadores das ciências, nos debruçamos sobre um conjunto de práticas “de baixo tom”, que possui historicidade, corpo e profundidade. A ideia de ‘baixo tom’ é utilizada pelo autor durante o livro numa tentativa de negar e reiterar a negação de uma história da ciência tradicionalista, positivista e improfícua.

Gostou? Nos acompanhe no instagram @nuncapura

Espero que tenham gostado dessa pequena síntese da obra de Shapin, incontornável para quem deseja ou está começando a estudar história das ciências, bem como para cientistas e divulgadores da ciência que queiram ampliam suas definições sobre o que é ciência.

No próximo capítulo de nossa série O que é História das Ciências?, abordaremos o historiador indiano Kapil Raj.

Referências Bibliográficas

SHAPIN, Steven; SCHAFFER, Simon. El Leviathan y la bomba de vacio. Hobbes, Boyle y la vida experimental. Buenos Aires, Universidad Nacional de Quilmes Editorial, 2005.

SHAPIN, Steven. A revolução científica. Lisboa: Difel -Difusão Editorial, 1999.

SHAPIN, Steven. Nunca Pura. Editora Fino Traço, 2013.

Deixe um comentário

Site no WordPress.com.

EM CIMA ↑

Design a site like this with WordPress.com
Iniciar