Vermes e ratos: a transferência química da memória

No ano de 1993, foi publicado pela primeira vez, pela Cambridge University Press, The golem: what you should know about science, ou, na versão brasileira, ‘O golem: o que você deveria saber sobre ciência’. Escrito por dois sociólogos britânicos, Harry Collins e Trevor Pinch, o livro tinha o objetivo de apresentar, através de 7 estudos de caso distintos, o ‘golem’ que é a ciência. O Golem, da mitologia, esse “bobo pesadão que desconhece tanto sua força como o grau da sua falta de jeito e ignorância” (COLLINS & PINCH, 2003, p. 20), é usado como metáfora para a ciência. Assim, a ciência não seria nem um ‘cavaleiro das cruzadas’, nem um ‘impiedoso deus hindu’. Ela é um golem, ou seja, algo que não pode ser responsabilizado, seja pela sua incapacidade de curar o câncer, ou pela sua potência de construir armas de guerra. Seja pela construção de uma rede de comunicação global, pela ‘autonomia agrícola’, ou por ‘Chernobil’. Os erros da ciência são nossos.

Um dos argumentos dos autores é de que os cidadãos, para o pleno exercício de sua cidadania numa sociedade altamente tecnológica e balizada pelo “científico” como sinônimo de correto – hoje poderíamos repensar em que medida o negacionismo está revertendo este quadro – não só devem conhecer ciência, mas muito mais importante que isso, devem conhecer sobre ciência – como ela funciona. Entretanto, para Collins e Pinch, a ciência da qual os cidadãos deveriam conhecer é a controversa, pois a maioria da ciência não é polêmica. Quando de uma controvérsia científica, “os cientistas não apenas discordam a respeito dos resultados mas também sobre a qualidade do trabalho dos outros. É o que impede que os experimentos sejam decisivos, dando lugar à regressão.” (p.21)

Harry Collins

As controvérsias, irresolutas, intermináveis, muitas vezes condenadas ao esquecimento, constituem, assim, parte de uma ciência que, na visão dos autores, deve ser conhecida por todos.

Trevor Pinch

Da teoria da relatividade, fusão fria, germes e geração espontânea, radiação gravitacional, neutrinos e vida sexual dos lagartos, um dos capítulos que eu achei mais interessante do livro foi o primeiro, intitulado Conhecimento comestível: a transferência química da memória.

O capítulo trata de uma série de experimentos controversos feitos entre 1950 e 1970, por James McConnell e depois Georges Ungar, que tinham como objetivo algo que daria um excelente filme de ficção científica: a transferência química da memória.

“Se as lembranças são codificadas por moléculas, então, em princípio, deveria ser possível decorar As Obras Completas de Shakespeare tomando um comprimido, dominar a tabuada com uma injeção na veia ou adquirir fluência em uma língua estrangeira aplicando a memória sob a pele; a ideia de “devorar” um dicionário passaria a ter um significado totalmente novo. McConnell e Ungar acreditavam ter demonstrado que as lembranças eram estocadas em substâncias químicas passíveis de ser transferidas de um animal a outro. Acreditavam ter demonstrado que as substâncias correspondentes às lembranças poderiam ser extraídas do cérebro de um ser vivo e passadas para outro com sucesso”. (p.24)

McConnell, um psicólogo excêntrico e polêmico, utilizou em seus experimentos vermes achatados, conhecidos como planárias, dando choques, esquartejando e dando umas de comida para as outras. Ungar, um neurobiólogo, macerou o cérebro de milhares de ratos, para injetar seus extratos em outros desses infelizes roedores. Esses cientistas não trabalharam juntos, não tinham os mesmos objetivos, nem mesmo uma formação acadêmica próxima, mas ambos tinham a ambição de transferir memórias. Talvez se a memória fosse um conjunto de moléculas especificadas e isoladas, elas pudessem de fato ser transferidas perfeitamente, mas as tentativas mostraram-se improfícuas. Na época, o tema repercutiu bastante, e àqueles cientistas que tentassem trabalhar com algo parecido eram vistos com maus olhos por seus pares.

Esses experimentos acabaram no esquecimento, o tema deixou de ocupar a imaginação científica, e ao fim, muito se discutiu e polemizou, mas, em teoria, a ideia de transferência nunca foi de fato refutada. O exemplo, assim, é usado pelos autores para pensar em como determinadas ideias movimentam grandes discussões e produzem uma ciência controversa e polêmica que, ao fim, não consegue ser conclusiva. Como os experimentos por si só, podem não dizer nada, e dependem de outros aspectos e dinâmicas do fazer científico.

Recomendo a leitura desse livro, e, em especial, deste capítulo, a todos que querem conhecer um pouco sobre ciência, sem cair em determinismos, para aprofundar nossas leituras sobre aquilo que, quer queiram quer não, move e organiza parte de nossa sociedade.

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