Entendendo o parto e a violência obstétrica: algumas leituras possíveis

A expressão ‘violência obstétrica’ é uma agressão contra a medicina e a especialidade de ginecologia e obstetrícia, contrariando conhecimentos científicos consagrados, reduzindo a segurança e a eficiência de uma boa prática assistencial e ética.

A alegação acima é do Conselho Federal de Medicina (CFM), e foi publicada recentemente (07/05) numa matéria do g1 na qual se noticiava a nova orientação do Ministério da Saúde, que considera inadequado a utilização do termo ‘violência obstétrica’, com a justificativa de que os profissionais de saúde não tem a intenção de causar danos a parturiente. A aparição dessa discussão talvez possa gerar estranheza para alguns, pois o termo é adotado tanto pela Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto era para o próprio Ministério da Saúde até pouco tempo.

A justificativa pouco fundamentada da nova orientação, bem como as alegações de parte da classe médica, de que se trata de um termo ofensivo, nos faz refletir sobre a seguinte questão: a quem interessa a mudança terminológica?

Os conhecimentos científicos consagrados que estariam, na lógica do CFM, sendo contrariados pela utilização do termo, precisam ser melhor analisados. Em primeiro lugar, a objetividade pretendida pelo discurso em questão esconde uma história da constituição da ginecologia como especialidade médica marcada, também, pela violência. Esta última, precisa ser contextualizada, é claro, e realmente é necessário ressaltar que não só a ginecologia, mas a história da medicina como um todo possui contornos violentos. Mas, o fato é que, a relevância de se pensar a história da consolidação científica dessa especialidade, bem como as práticas e técnicas envolvidas, pode nos ajudar a compreender o problema num nível mais estrutural, sem apontar ‘o dedo na cara’ de nenhum profissional de saúde, e sim considerando a historicidade e complexidade da questão.

O tema apresenta inúmeras nuances, que passam pela relação entre as práticas e artes de curar populares com a medicina oficial, pelo processo de apropriação e controle do sistema reprodutor feminino pela medicina, pela criação das Cadeiras de Parto nas Faculdades de Medicina e pelo surgimento da ginecologia como especialidade médica.

Independentemente da consolidação da ginecologia e da obstetrícia, os partos sempre foram e continuam sendo feitos por mulheres denominadas parteiras. A escolha destas como principal opção, em muitos casos, não necessariamente esteve ou está ligada à falta de médicos numa determinada região, ou a uma tradição primitiva local. Está sim ligada à concepções de saúde e elementos sócio-culturais compartilhados entre a parturiente e a parteira. Desse modo, as disputas entre diferentes práticas marcou essa história, não apenas quando o assunto é parto, mas nas ‘artes de curar’ como um todo. Ao longo do século XIX, por exemplo, os médicos utilizaram toda uma legislação que regulamentou a prática médica e restringiu a atividade de curandeiros e terapeutas populares.

Hoje existem as doulas, assistentes do parto que focam no bem estar da mulher, bem como uma noção de que o ato de parir é algo natural e que precisa ser vivido íntima e cuidadosamente. Atrelado a isso, o termo ‘violência obstétrica’ é veiculado, como já apontado, não só por parturientes e parteiras, mas por instituições e organizações de saúde, e se liga à vários pontos inerentes ao parto que vão desde aspectos mais estruturais, como as cesáreas desnecessárias impostas com vistas a manter uma indústria que automatiza esse processo, restrição da participação e autonomia da mulher no parto e laqueaduras sem consentimento até abusos psicológicos e sexuais.

É preciso, portanto, colocar esses dilemas em discussão, e definitivamente impedir a utilização do termo é no mínimo evitar a discussão. Diferente do que foi colocado pelo Ministério da Saúde, violência não está necessariamente atrelada à intencionalidade. Não precisa ser intencional para ser violento. Mas, é com a justificativa de que os profissionais da saúde não possuem a intenção de causar danos que se pretende deixar o termo em desuso, quando na verdade o termo não se trata de uma denúncia direta aos profissionais de saúde, e sim a um determinado modelo adotado.

Caesarean section, a nurse holding swaddled child (c.1420-30).

Para além de humanizar o parto e taxar a sua hospitalização como algo negativo, o que está em jogo com a utilização do termo é colocar em pauta os problemas de um sistema que precisa melhorar, independente do nome que se queira chamar.

Embora o parto não seja uma doença, podemos aqui fazer um breve paralelo com a hanseníase. A mudança do nome da doença de lepra para hanseníase, ocorrida unicamente no Brasil, em 1976, visou enfrentar o estigma da doença, que desde a antiguidade, por suas características estéticas, ocasionava o ostracismo dos leprosos. No fim, a mudança terminológica teve poucos resultados, o estigma e o preconceito continuam, e a doença também, sendo o Brasil um dos poucos lugares no qual a sua existência permanece. Ou seja, mudou-se o termo, mas não debruçou-se seriamente sobre o problema.

Dadas as devidas diferenças, o que se pretende com uma nova orientação terminológica agora soa muito parecido. A preocupação em levar o termo ‘violência obstétrica’ ao desuso pode estar mascarando os problemas reais existentes nesse processo, e que talvez o termo ajude na identificação. É preciso, assim, no caso dos médicos, pensar para além de uma defesa de interesses socioprofissionais, pois às vezes, como se mostra historicamente, os aparatos legais mantém a hegemonia das atividade aos médicos e aos hospitais, deixando de lado às vozes daquelas atores que não só fazem parte do processo, como são o próprio processo.

Na matéria do g1 referenciada no início desse texto, é citada a fala do médico e obstetra Dr. Alberto Guimarães, o qual, para além de pontuar o desconforto com o termo, deixa claro que:

Não se resolve a questão retirando ou proibindo o termo. É preciso combater algo que é sabidamente ruim e definir melhor políticas públicas, a relação médico-paciente, o que o profissional pode fazer para atender de maneira mais atenciosa, dar boa assistência no pré-natal, boa estrutura no ambiente da maternidade, bons profissionais envolvidos, e não atender pacientes demais ao mesmo tempo”.

A proposta desse texto, então, para além de uma reflexão geral e contemporânea, é indicar algumas leituras importantes sobre a história do parto, da ginecologia, da obstetrícia, bem como alguns outros materiais sobre ‘violência obstétrica’.

introdutórios

Você sabe o que é violência obstétrica?
http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/voce-sabe-o-que-e-violencia-obstetrica/

Documentário: “Sem Hora pra chegar: a busca pelo parto humanizado no DF”
https://www.youtube.com/watch?v=DlUpSB6nr9c&has_verified=1

Historiografia

Dossiê completo: Parto, nascimento e mortalidade infantil: saberes, reflexões e perspectivas (Revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Volume 25, número 4, 2018)
http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/nova-edicao-de-hcs-manguinhos-traz-dossies-sobre-parto-e-saude-infantil/
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0104-597020180004&lng=pt&nrm=iso

Assistência ao parto: do domicílio ao hospital (1830-1960) (Maria Lúcia Mott)
https://revistas.pucsp.br/revph/article/view/10588/7878

Ser mãe é uma ciência’: mulheres, médicos e a construção da maternidade científica na década de 1920. (Maria Martha de Luna Freire)
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59702008000500008&script=sci_abstract&tlng=pt

Ginecologia, gênero e sexualidade na ciência do século XIX (Fabíola Rohden)
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-71832002000100006&script=sci_arttext

A medicina da mulher: visões do corpo feminino na constituição da obstetrícia e da ginecologia no século XIX (Ana Paula Vosne Martins)
http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/280519

Matérias e notícias

Ministério diz que termo ‘violência obstétrica’ é ‘inadequado’ e deixará de ser usado pelo governo
https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2019/05/07/ministerio-diz-que-termo-violencia-obstetrica-tem-conotacao-inadequada-e-deixara-de-ser-usado-pelo-governo.ghtml

Hanseníase: a mudança no nome não eliminou o preconceito – Bloco 1
https://www2.camara.leg.br/camaranoticias/radio/materias/RADIO-CAMARA/419498-HANSENIASE:-A-MUDANCA-NO-NOME-NAO-ELIMINOU-O-PRECONCEITO.html

Hanseníase e as histórias de um Brasil que está na Idade Média
https://saude.abril.com.br/blog/tunel-do-tempo/hanseniase-e-as-historias-de-um-brasil-que-esta-na-idade-media/

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