Veterinária, engenharia e medicina: o retorno imediato ao contribuinte

Não estamos aqui para falar de economia. A ciência preferida dos capitalistas deve estar se sentindo traída, afinal, de acordo com o nosso presidente Jair Messias Bolsonaro, as ciências que geram um retorno imediato ao contribuinte são as medicinas veterinária e humana e a engenharia. Em recente declaração, Bolsonaro anunciou a intenção de descentralizar os recursos nas áreas de ciências humanas, com a justificativa de que tais áreas não possuem uma razão de ser em nossa sociedade. Se juntarmos isso às declarações do Ministro da Educação Abraham Weintraub, de que nenhum pai quer um filho antropólogo, teremos aqui um bom conjunto discursivo para analisar.

Bom, em primeiro lugar, é preciso ressaltar que as declarações foram emitidas por pessoas que estão ocupando cargos de alta importância para o país, mas que não possuem nenhuma qualificação para tratar dos temas ciência e educação. E, quando eu digo nenhuma eu não estou sendo rude. Você deve se lembrar das tentativas revisionistas de conectar o nazismo à esquerda e de inúmeras outras peripécias ditas por nossas autoridades balizadas e adestradas pelo pensamento do agora famigerado Olavo de Carvalho, sujeito que nega a perniciosidade do cigarro, nega a eficiência das vacinas, nega as leis de Newton e já fez afirmações bem icônicas anos atrás, como a de que a Pepsi estaria utilizando células de fetos abortados como adoçante em refrigerantes.

Assim, conhecendo da onde vem tais declarações, é possível refletirmos sobre – mas não muito, pois o caráter é de urgência. A lógica de Bolsonaro e Weintraub ultrapassam o mero utilitarismo que sempre existiu nas sociedades capitalistas ocidentais e que sempre produziu críticas severas às ciências. Os ataques são direcionados especificamente às áreas da filosofia e da sociologia, mas, é claro, isso pode ser aplicado às ciências humanas em geral, e, é claro, também, que essa é a intenção. Alguém poderia adivinhar por quê? Afinal, se a justificativa é a do retorno imediato ao contribuinte, nenhuma ciência deveria existir no governo bolsonaro. Para compreendermos isso temos que não apenas saber diferenciar ciência básica de ciência aplicada, mas também ter conhecimento de como funciona a produção científica no Brasil. Bom, como esse é um blog de História das Ciências, façamos uma pequena digressão, usando o exemplo da história do Instituto Oswaldo Cruz, atual Fiocruz, em Manguinhos, no Rio de Janeiro.


Fabricação de vacina Anti-variólica em ovo. Rio de Janeiro. (1954) Acervo Histórico da Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz

A instituição em questão teve a sua origem num contexto no qual se fazia necessário a produção de soro antipestoso, para combater a epidemia de peste bubônica. Nesse mesmo contexto, e com o mesmo objetivo, também foi criado o Instituto Butantan, em São Paulo. Da produção de soroantipestoso, esses institutos passaram a desenvolver estudos especializados em ciências biomédicas, nas áreas de microbiologia, parasitologia e medicina tropical. A ciência de ponta que passou a ser produzida no Instituto Oswaldo Cruz no início do século XX teve que, assim, para se sustentar numa sociedade que não sabia sequer o que era ciência, articular ciência básica, ciência aplicada e reconhecimento internacional, conquistando legitimidade e permanência, tornando-se com o passar dos anos uma das principais instituições de pesquisa biomédica e de saúde no mundo.

A estratégia do Instituto Oswaldo Cruz foi, então, a de aliciar ciência básica e aplicada – o que é de fato mais fácil se pensarmos que a especialidade do instituto foram sempre as ciências da vida -, e a cada demanda social, a cada crise epidêmica, a instituição conseguia reforçar a necessidade de sua existência. Doenças como a febre amarela, a varíola, a poliomielite, a esquistossomose, a rubéola, o sarampo, a hepatite, a meningite, a leishmaniose, a malária, a tripanossomíase, o HIV/AIDS, a dengue e as atuais zika e chikungunya foram e são objetos não só de pesquisas básicas que identificaram o patógeno, descreveram as suas dinâmicas, as suas morfologias, as suas interações ecológicas, moleculares, microscópicas, mas também foram e são objetos de grandes empenhos em produção de imunobiológicos, vacinas, soros, fármacos em geral, possibilitando um conhecimento ultraespecializado em diversas áreas do conhecimento – incluindo a História das Ciências e da Saúde, o Patrimônio, a Arquivologia e a Divulgação Científica – e ao mesmo tempo sanando as demandas sociais mais fundamentais da população.

Adolpho Lutz (1855-1940), importante médico e cientista brasileiro, que dedicou sua vida ao estudo da zoologia e entomologia médica

Com esse pequeno exemplo, queremos dizer que, sem ciência básica, não se faz ciência aplicada, sem conhecer como funciona a produção científica no Brasil, bem como a sua história e as suas dinâmicas sociológicas, filosóficas e antropológicas, pouco se fará no âmbito das políticas públicas em ciência e educação. Sim, se formos seguir essa lógica utilitarista e imediatista do governo, podemos dizer que a aplicabilidade das ciências humanas está não só na formação, a nível escolar e acadêmico, de sujeitos críticos, mas também na consolidação de políticas, e, é talvez justamente por isso, que essas áreas estejam sendo atacadas há um bom tempo.

Para finalizar, cabe uma inquietação: por qual motivo se acredita que a veterinária, a engenharia e a medicina são os melhores exemplos de um retorno imediato ao contribuinte? Da medicina veterinária seria pelo fato de que os cachorros de Bolsonaro precisam de atendimento constante? Ou seriam demandas específicas, mais relacionadas ao agronegócio? Da engenharia, seria pela aprovação de laudos “neutros” que destruiríam barragens causando inúmeras mortes e contribuindo para um colapso ecológico? Da medicina, seria a expulsão de médicos cubanos altamente qualificados descobrindo o atendimento à inúmeras regiões carentes do país e proliferando clínicas particulares e planos de saúde?

Bom, como eu disse, são apenas inquietações. Veterinários, engenheiros e médicos que possivelmente venham a ler esse texto, sabemos que entenderão nosso ponto. Não estamos seguindo o mesmo modus operandi do governo e buscando, por “vingança”, desqualificar essas áreas, das quais, inclusive, admiramos e também estudamos – em âmbito histórico, óbvio. Estamos apenas tentando apresentar todos os problemas que teremos que enfrentar num contexto que deslegitima a ciência e as humanidades. Essas problemas, que parecem óbvios e simples, se chacoalhados trazem – e trarão – inúmeros outros.

(desculpem pela acidez, mas o contexto não é cômico, e precisamos debater sobre isso)

Nota conjunta Anpuh e SBHC em defesa das Humanidades
https://www.sbhc.org.br/informativo/view?ID_INFORMATIVO=159

Entidades repudiam declarações do ministro da Educação e de Bolsonaro sobre filosofia e sociologia
https://jornalistaslivres.org/entidades-repudiam-declaracoes-do-ministro-da-educacao-e-de-bolsonaro-sobre-filosofia-e-sociologia/

Referências do texto:
“Cobras, largartos & outros bichos: uma história comparada dos institutos Oswaldo Cruz e Butantan.” Editora UFRJ, 1993 (Jaime Larry Benchimol e Luiz Antônio Teixeira)

KROPF, Simone Petraglia; HOCHMAN, Gilberto. From the Beginnings: Debates on the History of Science in Brazil. Hispanic American Historical Review, v.91, n. 3, p. 391-408, 2011.

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