O que um antivacina faria numa epidemia de varíola?

É verdade que nossas mães nos enganaram quando éramos crianças, ao dizer que a picada da vacina “é como a de um mosquito, não dói nada”, ou então “você nem vai sentir”. Tudo bem, embora eu, quando pequeno, nunca tivesse aflição de agulhas e seringas como muitos, também me senti traído por essa analogia esfarrapada. Mas, o fato é que, precisava criar todo um movimento antivacina por causa disso? (rs)

Brincadeiras à parte, pode ser chato se vacinar, e realmente muita gente tem fobia de agulhas, mas trata-se de algo extremamente eficaz e necessário – não só para o seu filhinho, mas para a saúde global -, e não, o movimento antivacina não foi criado por crianças revoltadas com suas mães. Se trata de algo mais profundo.

A vacinofobia não é algo nada novo, e você certamente já ouviu falar de eventos históricos como a Revolta da Vacina, que explodiu em 1904 no Rio de Janeiro e, dadas as devidas ressalvas pelas variadas interpretações historiográficas do ocorrido, foi uma reação da população aos decretos de vacinação antivariólica obrigatória. Esse evento é emblemático da história da saúde no Brasil, mas poderíamos citar inúmeros casos históricos envolvendo a vacinação e seu respaudo científico, conflitos políticos, institucionais e reações sociais.



 No mesmo Rio de Janeiro da Revolta, o médico e cientista Domingos José Freire (1842-1899), por exemplo, na segunda metade do século XIX, não apenas desenvolveu uma vacina contra a febre amarela baseada numa hipótese de que o seu agente etiológico era o micróbio criptococo xantogênico, como também, sendo diretor da Junta Central de Higiene Pública, conseguiu aplicar a sua vacina em milhares de brasileiros.

O inspetor de higiene Trajano Joaquim dos Reis (1852-1919), no Paraná, conseguiu aprovar em 1890, por exemplo, a vacinação antivariólica obrigatória, 14 anos antes da tentativa carioca, numa região tomada de imigrantes europeus pobres e famintos que eram vistos, pelas autoridades públicas, como a personificação das doenças contagiosas.

Já adentrando o século XX, nos tempos do nacional-desenvolvimentismo de Juscelino Kubitsheck, a vacina contra a bouba, doença infecciosa que atingia a população pobre no interior do país, parecia ser, aos olhos daquele governo, a solução mágica, ou melhor, a tecnologia biomédica que sanaria os males daquele povo, e pouca atenção foi dada, novamente, aos determinantes sociais como a pobreza e a fome.

Essas contradições, entraves e desenlaces, características próprias da História da Saúde e da História da Imunização, só apontam os usos e desusos dessa tecnologia que, criada no século XVIII por Edward Jenner (1749-1823), se aprimorou na medida em que os estudos biomédicos foram se desenvolvendo, embora a própria vacina antivariólica ou a vacina antirrábica, por exemplo, foram desenvolvidas antes mesmo de se conhecer o agente etiológico, que, nesses dois casos, eram vírus, e, por conta disso, sequer eram visíveis no século XIX, muito menos no XVIII.

Mesmo sem entrar em aspectos imunológicos para explicar o funcionamento ou a lógica da vacina o tema é complexo, eu sei. Mas o que queremos aqui, é apontar que, embora hoje a vacina e sua eficácia pareça algo dado, se observarmos cautelosamente a história desses processos de vacinação, perceberemos as longas disputas e conflitos de interesses pelos quais essa tecnologia teve que passar para se consolidar como um fato científico. É, talvez, só compreendendo esse “peso histórico” da vacina que conseguiríamos entender que ser contra elas é algo ilógico.

 A erradicação da poliomielite no Brasil em 1994, por exemplo, ou a erradicação mundial da varíola, em 1980, não trataram-se de simples processos, demandaram inúmeros esforços científicos e políticos, cooperação internacional e o convencimento da população de que aquilo seria algo positivo para a coletividade. Doenças que hoje sequer nos preocupamos, tal como o sarampo, a caxumba e a rubéola, estavam entre as principais causas de mortalidade infantil no início do século XX, ou seja, antes da vacina tríplice viral.

Essa carga histórica presente na vacina, o controle e a erradicação de doenças altamente letais, faz com que seja difícil entender o surgimento de um grupo organizado defendendo a não-vacinação. Exagerando, seria como uma espécie de “autobioterrorismo a longo prazo”. Não é à toa que o movimento antivacina foi incluído, em 2019, na lista de dez maiores ameaças à saúde pela OMS, juntamente com os vírus do ebola, HIV, dengue e influenza.

Em 1998, o médico britânico Andrew Wakefield publicou um estudo tentando estabelecer uma relação entre a vacina tríplice viral e o autismo. O objetivo do médico era o de toda empresa: lucrar. Visando angariar adeptos para o seu imunizante contra o sarampo, Wakefield não tinha compromisso nenhum com os fatos científicos, mas também não imaginava que esse seu artigo seria uma grande mola propulsora dos movimentos antivacina. Essa perigosa fraude acadêmica resultou na já comum associação entre vacinas e autismo, o que não faz nenhum sentido. Com a disseminação dessa mentira nas redes sociais, uma afirmação infundada passou a referenciar os “argumentos” dos antivacina. Isso levou, por exemplo, no Brasil, país que é referência internacional nas políticas de imunização, a uma queda drástica nas estatísticas da cobertura vacinal.

Dadas as devidas conclusões, façamos agora um pequeno exercício. Calma, não vai valer nota (rs). Imagine um indivíduo antivacina. Alguém com seus trinta e poucos anos, que não chegou nem a tomar a vacina contra a varíola. Imagine que ele faz parte de um movimento contrário às vacinas, por acreditar, baseado em conteúdos diversos das redes sociais, que elas são prejudiciais à saúde, causam autismo e outras complicações sérias, debilitam o corpo e não possuem eficácia imunológica.

Agora imagine esse mesmo indivíduo sendo transportado para um cenário de crise epidêmica. A doença pode ser varíola. Sim, imagine um cenário no qual o vírus da varíola volta a atacar, por algum fator ecológico ou mesmo bioterrorista. Muitas pessoas morreriam, é claro. Afinal, as gerações pós erradicação da varíola não conhecem nem o rosto da doença, nem a agulha da vacina. Também não possuem imunidade ao vírus. Qual seria a reação desse indivíduo? Atribuir à epidemia um teor apocalíptico? Considerar o fim dos tempos e acampar pelado na selva?

Bom, embora existam essas possibilidades, é mais provável que na primeira oportunidade de imunização antivariólica nosso sujeito seria um dos primeiros na fila da vacinação. Se fosse no Brasil, esse mesmo camarada ainda iria estar reclamando, na fila, de como a saúde pública e o SUS são horríveis, e de como os Estados Unidos são incríveis, pois lá não ocorrem epidemias.

Um antivacina numa epidemia de varíola, provavelmente iria tomar vacina, se lhe fosse possível. Sabe por quê? Pois, para além do fato da varíola ser altamente contagiosa, ela é uma doença horrorizante, tal como uma leishmaniose tegumentar ou a hanseníase. Ou seja, o apelo estético faria com que o indivíduo antivacina reconsiderasse suas crenças. Desse modo, vendo corpos amontoados pela rua, serviços básicos interrompidos, familiares morrendo, e estatísticas de morte subindo, não sobraria espaço para os detratores da vacina. É, assim, possível considerar que, o que falta para o movimento antivacina é um pouco de realidade, um pouco de história, um pouco de doença.

REFERÊNCIAS E SUGESTÕES DE LEITURA:

Matérias de jornais:

“Movimento antivacina é incluído na lista de dez maiores ameças à saúde em 2019”
https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/movimento-antivacina-incluido-na-lista-de-dez-maiores-ameacas-saude-em-2019-23413227

“Por que o movimento antivacina não tem um pingo de sentido”
https://saude.abril.com.br/blog/cientistas-explicam/por-que-o-movimento-antivacina-nao-tem-um-pingo-de-sentido/

“Quem tem medo da vacina?”
https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/todas-as-edicoes/196

Livros e capítulos:

“A revolta da vacina: mentes insanas em corpos rebeldes.” (Nicolau Sevcenko)

“Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial.” (Sidney Chalhoub)

“Reforma urbana e Revolta da vacina na cidade do Rio de Janeiro.” (Jaime Benchimol) in O Brasil republicano: o tempo do liberalismo excludente – da Proclamação da República à Revolução de 1930. (Jorge Ferreira e Lucilia Delgado – org.)

“Dos micróbios aos mosquitos: febre amarela e a revolução pasteuriana no Brasil.” (Jaime Benchimol)

“Basta aplicar uma Injeção? Desafios e contradições da saúde pública nos tempos de JK (1956-1961).” (Érico Silva Muniz)

“The Politics of Vaccination: A Global History.” (Christine Holmberg, Stuart Blume and Paul Greenough)

Artigos científicos:

“Higienismo, saúde e doença: Trajano Joaquim dos Reis e a Inspetoria de Higiene do Paraná (1889-1919).” (Jorge Tibilletti de Lara)
https://www.16snhct.sbhc.org.br/resources/anais/8/1545147555_ARQUIVO_ArtigoJorgeTibilletti-rev.pdf

“Erradicação da poliomielite no Brasil: a contribuição da Fundação Oswaldo Cruz.” (Hermann Schatzmayr et al)
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59702002000100002&script=sci_abstract&tlng=pt

“A transição de saúde pública ‘internacional’ para ‘global’ e a Organização Mundial da Saúde.” (Theodore Brown, Marcos Cueto e Elizabeth Fee)
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702006000300005

“Bioterrorismo e microorganismos patogênicos.” (Hermann Schatzmayr e Ortrud Monika Barth)
http://www.scielo.br/pdf/hcsm/v20n4/0104-5970-hcsm-20-04-01735.pdf

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