Os padres voadores

Você se lembra do famoso padre do balão? Sim, aquele que decidiu fazer um voo amarrado em balões de gás hélio e sair por aí viajando o mundo. Na verdade, ele tinha o grande objetivo de bater um recorde de permanência no ar na modalidade do balonismo. Infelizmente, sua empreitada teve um fim trágico. Depois de três meses de sua partida, que aconteceu em abril de 2008, os supostos restos mortais de Adelir Antônio de Carli foram encontrados a 100 km da costa de Maricá, Rio de Janeiro.

 Após o exame de DNA feito pelo Instituto Médico Legal, foi confirmado que o corpo encontrado era realmente do religioso aventureiro. Apesar do fim infeliz dessa aventura, o Padre entrou para a História e rendeu vários memes e risadas que ainda sobressaem-se em nossas lembranças. Se você acha que esse foi o primeiro religioso que se propôs a testar experiências com voo, devo-lhe informar: achou errado!!

 Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1728), também conhecido como “O Voador”, construiu o projeto da primeira máquina voadora portuguesa em 1709, intitulada “Passarola”.

Ele nasceu em São Vicente, no Brasil, e nessa vila iniciou seu letramento no Colégio São Miguel, o único da região. Mais tarde continuou seus estudos na Bahia de Todos os Santos, no Seminário de Belém, onde provavelmente iniciou sua vida como inventor. Nesse período, ele construiu uma técnica para transferir água do brejo localizado nas proximidades de onde estudava para o Seminário. Como a falta de água era um problema grave na região, o reitor e fundador do Seminário, Alexandre de Gusmão – sim, todo mundo nessa época parecia se chamar Gusmão -, considerou seu empreendimento muito utilitário. Ainda na Bahia, em Salvador, acabou entrando para a Companhia de Jesus, de onde saiu sem terminar os estudos em 1701, como um bom ‘jovem aventureiro’. No mesmo ano, viajou para Portugal, onde já era conhecido pelos seus dotes intelectuais, apesar de ter apenas 17 anos. Sim, realmente ele era um inventor precoce.

Em 1708, voltando mais uma vez a Portugal, já ordenado padre, se matriculou na Faculdade de Cânones da Universidade de Coimbra, mas, passado alguns meses, deixou de lado os estudos novamente para ir viver na capital portuguesa a convite do Rei D. João V e da Rainha Maria Ana da Áustria. Realmente, nosso jovem padre tinha apresso. Foi em Lisboa que Bartolomeu de Gusmão pediu patente ou petição de privilégio para um instrumento cuja a finalidade seria a de andar no ar, a famosa máquina Passarola. Essa invenção chamou a atenção de vários países europeus.

 No senso comum, acredita-se que essa máquina veio a ser o que conhecemos hoje por aeróstato ou balão, mas, será que essa afirmação é correta? Certamente novas maneiras de pensar as experiências com voo foram propostas e as invenções também, então é um pouco perigoso acreditar que a Passarola, que mais se parecia com um pássaro, era um balão. O projeto da Passarola havia sido criado por um aluno de matemática de Bartolomeu, o oitavo conde de Penaguião e futuro segundo marquês de Abrantes que tinha apenas 14 anos no momento. Como professor, Gusmão auxiliou seu aluno nessa empreitada.

Por conta das acusações e questões inesgotáveis dirigidas ao inventor, decidiram atribuir o sucesso do experimento ao magnetismo, ou qualquer outra causa natural e aleatória. A Passarola, que parecia ter sido inspirada na fauna brasileira, ganhou várias copias e ficou bastante conhecida na Europa.

 É, Adelir e Bartolomeu queriam desbravar o céu, cada um em seu tempo. Bom, brincadeiras a parte, esses dois padres voadores nada tem em comum a não ser o fato de terem alçado voo estilosamente, e é preciso pontuar isso! Os instrumentos intelectuais que Bartolomeu dispunha para, no início do século XVIII, pensar em experiências com voo, certamente eram muito especializados e inovadores para o período. Além de seus esforços intelectivos, suas viagens para a Europa e seu contato com pessoas nobres puderam lhe proporcionar novos conhecimentos. Adelir, por sua vez, foi um sacerdote da pequena cidade de Paranaguá, no Paraná, muito dedicado aos direitos humanos, e, ainda hoje, é curioso pensar: por quais motivos ele se interessou pelo balonismo?

Por mais incrível que pareça, esse caso nos faz refletir sobre os papéis nos saberes e nas ciências. Claro, o padre do balão nada tem de relação com alguma ciência, pelo menos até onde sabemos, mas se propôs a aventurar-se numa viagem que parecia surreal aos nossos olhos. Acabou que nossa intuição estava certa. Mas, Bartolomeu, assim como vários outros religiosos de seu tempo, que atuavam como matemáticos, cosmógrafos, astrônomos e filósofos naturais, fazia parte de um mundo moderno no qual a ciência e a técnica começava a emergir de diversos lugares – incluindo, óbvio, os lugares ocupados por religiosos e pitorescos inventores. É claro, isso não ficou restrito aos séculos XVII e XVIII, pois ainda hoje muitos religiosos estudam outras ciências ao longo de sua formação; temos também exemplos históricos como o naturalista e fisiologista Lazzaro Spallanzani (1729-1799) ou o famoso Gregor Mendel (1822-1884) que além de comer ervilhas também foi cientista.

Talvez a figura que nós temos do cientista, homem de jaleco trancado num laboratório produzindo vários experimentos em busca da novidade, tenha que ser repensada. A própria palavra cientista é muito recente, pois, antes desse termo agregador, o que existiam eram os artesãos, matemáticos, astrônomos, médicos, anatomistas, agrimensores, navegantes, engenheiros, boticários, cirurgiões-barbeiros, viajantes, mecânicos e mais uma infinidade de grupos e de intelectuais que vieram a contribuir significativamente para a consolidação de saberes científicos entre os séculos XVI e XVII na Europa. A Revolução Científica – sim, aquele evento considerado inaugurador da ciência moderna – também foi promovida, deste modo, por padres voadores. É claro, estamos falando do nosso Gusmão, não do fatídico padre do balão.

Sugestões de Leitura:

SHAPIN, Steve. A Revolução Científica. Lisboa, Difel- Difusão Editorial, 1999

ROSSI, Paolo. O nascimento da ciência moderna na Europa. São Paulo: EDUSC, 2001.

TAUNAY, Afonso d’Escragnolle. Bartolomeu de Gusmão, inventor do aeróstato: a vida e a obra do primeiro inventor americano. São Paulo: Edições Leia, 1942.

GUSMÃO, Bartholomeu de. Reproduction fac-similé d’un dessin à la plume de sa description et de la pétition adressée au Jean V. (de Portugal) en langue latine et en écriture contemporaine (1709) retrouvés récemment dans les archives du Vatican du célèbre aéronef de Bartolomeu Lourenco de Gusmão “l’homme volant” portugais, né au Brésil (1685-1724) précurseur des navigateurs aériens et premier inventeur des aérostats. 1917 (Lausanne : Impr. Réunies S.A.) em francês e latim.

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