Seria a física a ciência mais nobre?

Você já parou para pensar que, em geral, quando se fala em ciência, as imagens e as palavras envolvidas, ou seja, a estética do assunto, está sempre num invólucro de objetos, instrumentos, fórmulas e tudo o mais relacionado à física? Você já parou para refletir que, quando fazemos um exercício de pensar na imagem de um cientista, de súbito pensamos em Albert Einstein?

Você já reparou que aquele seu amigo ou amiga que se diz amador de ciência, os science lovers, consomem em geral aquilo que é produzido por divulgadores da ciência como Carl Sagan, ou seu “pupilo” Neil deGrasse Tyson, ou ainda, devoraram Uma Breve História do Tempo, do saudoso Stephen Hawking? E, no âmbito da cultura pop, as camisas da Nasa, as estampas espaciais e os filmes e séries com temáticas “quânticas”?

Tá bom, talvez eu esteja exagerando. Mas, o ponto desse texto, é refletir sobre a seguinte questão: seria a física a mais nobre dentre as ciências? Bom, é a física, ao menos, que conseguiu capitalizar, ao longo da história, tanto reconhecimento e legitimação, que se tornou um modelo não só para as outras ciências, mas para a sociedade.

E, embora hoje, como mostra o documentário A Terra é plana da Netflix, existam pessoas realmente engajadas em destronar a física, e caminhar por uma via isenta da matematização do mundo, própria às ciências físicas desde a chamada Revolução Científica do século XVII, a física ainda é, e provavelmente continuará sendo, o sinônimo mais “adequado” de ciência no imaginário social. Tentar explicar definitivamente este fenômeno em um único texto seria tentar enxugar gelo, mas podemos fazer um pequeno exercício, balizados, é claro, pela História das Ciências.

Nos séculos XVII e XVIII, a filosofia natural – mais conhecida como ciência – se segmentou em dois grandes grupos: os mecanicistas e os vitalistas. Basicamente, os primeiros defendiam que as explicações dos fenômenos vitais reduziam-se a compreensão de suas propriedades físicoquímicas.

O tratado que inaugurou a anatomia moderna, publicado em 1543 por Andreas Vesalius (1514-1564), De Humani Corporis Fabrica, expressa bem essa ideia, que ganharia mais força no século XVII, de que ‘tudo se explica pelos mecanismos’. Já os vitalistas, como ficaram conhecidos, acreditavam na existência de fenômenos vitais por excelência, abstratos, que não teriam uma explicação matemática direta. Esses, em geral anatomistas e fisiologistas, tentavam, nesse período, não se render ao reducionismo mecânico dos mecanicistas.

Esse debate se complexificou ainda mais no século XIX, pois, com a institucionalização e especialização das disciplinas científicas, àquelas ciências – em geral as da vida – que não tinham a física como parente próximo – ou melhor, como a tia do pavê -, viram emergir a ideia segundo a qual a física seria o modelo para todas as ciências. Ou seja, basicamente, para ser científico, tinha que ter algum respaudo na física. Esse “fisicismo” pode ser melhor explicado, nas palavras de Luiz Henrique de Araújo Dutra, como


A ideia de que o progresso da ciência nos levará a uma grande física, que explicará de um único ponto de vista todo tipo de fenômeno e possibilitará todas as reduções necessárias de todas as disciplinas científicas a essa ciência unificada.

É, nossos camaradas do século XIX eram bem exagerados, não? A mecânica clássica, dos sistemas e generalizações, que ainda predominava nesse século, foi “substituída” pela mecânica dos fenômenos quânticos, que passou a priorizar outras interações da matéria. Entretanto, esse “abandono” bombástico do paradigma newtoniano só fez crescer ainda mais a influência da física como modelo.

Bom, o fato é que nem todos os fenômenos que existem se resumem à fenômenos físicos, e nem todas as ciências à física. Como já cansei de digitar a palavra física nesse texto, e acabo de perceber que ele já está ficando muito ‘Georges Canguilhem’, devo dizer, para encerrar, que a proposta desse texto era refletir sobre duas coisas.

A primeira, é a hierarquização existente no imaginário social com relação à ciência. Sim, a física parece ser a ciência mais nobre, ao mesmo tempo em que as ciências humanas sequer são consideradas Ciência – a divisão entre as chamadas ciências duras, ou hard sicences, e as “ciências moles” também daria um texto legal –  com C maiúsculo. Nada contra os físicos, tenho até amigos que são, mas percebem como essa hierarquia pode ser uma herança do mecanicismo e do fisicismo?

Como todos os “ismos”, sufixos de valorização, essas ideias buscaram valorizar tanto seus conceitos que reduziram e determinaram a discussão. É nisso que eu penso quando ouço falarem em “método científico”, no singular, como se da física de partículas à urologia todos os cientistas trabalhassem do mesmo jeito.

Referências citadas no texto:

DUTRA, Luiz Henrique de Araújo. Claude Bernard, o Vitalismo e o Materialismo. In: RUSSO, Marisa; CAPONI, Sandra. Estudos de filosofia e história das ciências biomédicas. São Paulo: Discurso Editorial, 2006.

Sugestões de leitura (artigos e livros):

Hard Sciences” and “Social Sciences“: Um enfoque organizacional”:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0011-52581998000300002

“How Hard is Hard Science, How Soft is Soft Science? The Empirical Cumulativeness of Research”:
http://users.cs.northwestern.edu/~paritosh/papers/others/HedgesHardSoftScience87.pdf

O Golem: o que você deveria saber sobre ciência.” (Harry Collins & Trevor Pinch)

“Gênese e desenvolvimento de um fato científico.” (Ludwik Fleck)

Leviathan e a bomba de vácuo: Hobbes, Boyle e a vida experimental.” (Steven Shapin & Simon Schaffer)

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